domingo, 26 de agosto de 2012

Pernas, pra que te quero


Talvez o erro mais comum ao interpretar os estudos de Charles Darwin seja o de acreditar que a sobrevivência da espécie humana esteja vinculada ao mais forte ou mais inteligente. Na verdade, a teoria de Darwin sugere que as chances de sobrevivência são maiores naqueles mais adaptados à transformação, à mudança.
A habilidade humana de sobreviver é guiada pelo inconformismo, do conflito até a transformação. Portanto, transformação e adaptação são as grandes vedetes do poder criativo humano.

Lynn Johnson/Aimeemullins.com
Aimee Mullins nasceu pra provar isso. Nasceu precoce, carregando uma deficiência congênita e teve as duas pernas amputadas abaixo do joelho com um ano de idade.

Desde então passou a andar usando próteses. Andar e correr. E correu tanto que em 1996 quebrou o recorde paraolímpico dos 100 metros rasos em Atlanta. Também formou-se em História e Diplomacia. Depois, virou modelo e atriz, atividades que exerce até hoje.
Mas foi em conversa com um grupo de crianças que Aimee passou a refletir sobre o potencial do deficiente físico na sociedade atual. Ela estava lá justamente para desmistificar o uso de próteses entre as crianças, permitindo que elas explorassem as pernas artificiais de silicone, imitando pernas comuns, e as pernas que usava para competir, com formato de palheta feitas de fibra de carbono.
Por brincadeira, perguntou às crianças que tipo de pernas seria necessário para pular sobre um prédio. Ouviu delas que seriam pernas de sapos ou cangurus. Até que um deles perguntou “Por que você não quer voar também?”. E foi nesse instante que a percepção das crianças mudou. Aimee deixou de ser vista como deficiente e passou a ser vista como supereficiente, alguém que poderia ter habilidades raras, extras, paranormais.
Foi pensando nisso que ela desafiou profissionais inovadores, fora do círculo tradicional de médicos protéticos, como cientistas, engenheiros, poetas e designers, a criar pernas que fossem além de simplesmente pernas. Sua intenção era a de frear a valorização e compartimentalização de forma, função e estética.
E foi no mundo da moda que Aimee desbravou esse conceito, desafiou o conceito de beleza, desfilando com pernas de madeira esculpidas a mão, pernas transparentes, feitas de materiais e formas que não necessariamente replicavam pernas humanas como o ideal estético. As próteses tornam-se poéticas, obras de arte, que convidam o olhar a explorar mais e não mais enganá-lo. Agora, as pernas de Aimee não buscam apenas andar ou correr, mas estimulam a imaginação.
Aimee também passou a brincar com sua constituição física. Possui pernas de diferentes tamanhos, que alteram sua altura dependendo do contexto social. E foi numa festa que ouviu de uma conhecida, surpresa com a repentina mudança de estatura de Aimee, que alterar a altura conforme sua vontade não era justo.

O comentário mostra que o diálogo de Aimee com a sociedade mudou. Não é mais o discurso pronto, e já defasado, de como o deficiente aceita ou supera as dificuldades.
Agora a conversa é sobre a adição de qualidades extras, é uma conversa sobre potencial. Significa que estamos entrando em uma nova fase na história humana, onde o deficiente não precisa mais se contentar em substituir o que lhe falta, mas pode criar em cima daquele espaço físico, tornando-se arquiteto da sua própria identidade.
Podem, inclusive, alterar constantemente sua identidade através do design corporal, combinando tecnologia com arte, com poesia, buscando o valor real do que conhecemos como individualidade humana.
Acho que o potencial humano de criação e transformação vai florescer quando abraçarmos de vez nossa diversidade, seja ela física ou cognitiva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário