quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Carta à professora

Como todos sabem, todo ano faço uma"carta" para professora do Ângelo com intuito de abreviar o tempo em que ela levaria para conhecê-lo. Lendo as cartas antigas, percebi quantos passos meu menino deu à frente.
Neste ano, devido a experiência que tivemos, além das características do Ângelo, somamos o nosso desejo do que esperamos da nova professora. Porém, nosso maior desejo é que exista uma relação verdadeira e comprometida entre todos os envolvidos e juntos possamos encontrar sempre o melhor caminho para se trilhar e colhermos vitórias.


Querida professora,

Mais um ano se inicia e quando receberes a relação de seus alunos, espero que meu diagnóstico não lhe cause nenhum receio. Apesar de ser apenas uma criança, sei que a vida nos apresenta muitos desafios e trilhando este lindo caminho que passaremos a andar, estou certo de que venceremos todos eles.
Meu desenvolvimento ocorreu normal, como de qualquer outra criança até um ano e meio (aproximadamente) e diante de uma sequência de febre, perdi habilidades das quais havia conquistado: parei de olhar as pessoas nos olhos, responder quando chamavam meu nome, parei de brincar e se interessar pelas outras crianças.
Hoje não sou mais assim e e se estou aqui, é porque acredito imensamente que irás acrescentar na minha vida, na minha história.
Minha mãe não sabia o que eu tinha e passou a estudar a diversidade humana colecionando matérias no blog http://pratica-pedagogica.blogspot.com.br/ , há um pouco da nossa história lá.
O fato é que percebo o mundo de forma diferente e alguns detalhes que passam desapercebidos para a maioria das pessoas, podem  chamar muito a minha atenção como: texturas, movimentos, sons.... Não se zangue se eu passar a mão em sua roupa para sentir a textura, me distraia com um risco no chão, pare tudo para olhar um movimento de um colega ou chore diante de algum barulho.
O médico disse que determinados ruídos são sentidos 100 vezes mais alto do que para as outras pessoas, por isso, algumas vezes os sons doem. Apresento sensibilidade auditiva.

Como qualquer criança posso ter momentos de descontrole emocional, mas pelo fato de não conseguir me fazer compreendido, ou seja, não conseguir expressar o que sinto ou me assusta, fica difícil para mim controlar sentimentos ruins como: dor, ansiedade, medo, frustração. Vivencio esses sentimentos de forma mais intensa que as outras pessoas e a minha única forma de demonstrar é o choro.
Mas algumas vezes é possível contornar esta situação. Procure perceber se há barulhos excessivos ou diferentes, como alguma comemoração ou reforma. Nesses casos, explica-me o que está acontecendo e permita que me sinta seguro e tudo ficará bem. Embora sinta dor quando há excesso de barulho, ao explicar-me que tipo de barulho é este, o que está acontecendo ou porque as pessoas se agitaram, mesmo tampando meus ouvidos ficarei bem, pois estou conseguindo aprender a conviver com todos tipos de sons.
Fico ansioso em aguardar algo. Explica-me de várias formas o que estou esperando e me antecipe o que irá acontecer e eu ficarei bem.
Quando não consigo realizar algo, enfrento excesso de ruídos ou poluição visual, tenho tendência a me isolar ou querer muito sair do ambiente.. Tenho certeza, que terás a sensibilidade em perceber minhas capacidades e de que maneira conseguirei avançar.

Imagine se tivéssemos uma única aluna de olhos claros na sala, tenho certeza que  não permitirás que a tirem do ambiente, do convívio com os colegas para ficar alheia no pátio por causa de seus olhos a menos que ela precise, não é mesmo? Olha-me desta mesma forma. É muito importante para mim fazer parte e estar com a minha turma, não me prive e não permita que ninguém o faça deste convívio sem que haja necessidade e se houver necessidade, avise meus pais para que junto aos profissionais que me acompanham, encontrar uma forma de solucionar. 
Meus pais não medirão esforços para apoiá-la, por isso, não omita a eles sobre o meu desempenho e desenvolvimento.
Embora eu apresente bastante destreza em manipular o tablet, tenho dificuldade em segurar o lápis de forma correta e desenhar alguma forma com sentido. Desenhar, ainda é um desafio a superar. Porém, no ano que passou, apresentei grandes progressos neste sentido.

Tudo o que eu realizar, você perceberá em meus olhos quando me elogiares o quanto sinto-me orgulhoso de minhas próprias conquistas. Perceberá o valor de cada traço que eu fizer e a importância que dou a um elogio seu.
Preciso da compreensão diante do fato que não procurarei fazer amigos, nem mesmo na hora do recreio. Embora ame estar entre meus colegas e são todos muito valiosos para mim, não sei como agir e tenho limitações para interagir. Não gosto de ser sozinho. A solidão é uma consequência  das limitações que enfrento e não um desejo meu. Não posso apenas ser assistido de longe e deixado por conta própria, preciso ser conduzido para as outras crianças e aprender, assim como todos os outros, as regras sociais. Não posso me apropriar de algo que não seja meu sem ser convidado ou emprestado, seja lanche ou material escolar. Ajuda-me a conviver, respeitar e ser respeitado.
Pequenas atitudes proporcionam momentos de superação e cada avanço possui um valor inestimável. Pode parecer algo tão pequeno para as pessoas que sabem conviver em sociedade, mas preciso de um "intérprete social" para intervir em questões que podem ser mal compreendidas futuramente.
Não sejas voz para as pessoas sentirem piedade frente as diferenças, mas sejas para que eu possa ocupar meu espaço que é de direito e do qual sou digno.
Permita-me também fazer parte das pequenas coisas junto aos meus colegas, como me posicionar na fila, ficar até o final da aula e me despedir da senhora como todos os outros fazem. E, se por alguma razão eu me desviar, conduza-me de volta até seu comando ficar bem claro para mim.
Caso a escola decida fazer alguma viagem de estudos, verifique se meu cuidador poderá me acompanhar ou permita que algum familiar o faça, pois também faço parte da turma.
Entendo tudo o que as pessoas falam, percebo que estou entre pessoas que se comunicam e demonstro muito que gostaria de poder falar também. Em cada tentativa que eu fizer, por favor, preste a atenção em mim, dê uma pausa para que eu me encorage a concluir e principalmente me sinta seguro para me arriscar, pois algumas palavras, já consigo pronunciar.
Por outro lado, não espere perfeição, valorize o que eu verbalizar, pois isto é um desafio que os médicos acreditam que não vencerei, mas estou cercado de pessoas que acreditam muito que posso ir além do que a medicina espera. Aliás, estar aqui entre todos, é algo que disseram que eu não conseguiria devido a minha sensibilidade auditiva.
Existem momentos de crises de choros irreversíveis e bem intensos. Nesses momentos apresento questões orgânicas como dor de cabeça, ouvido, garganta... Ofereça-me seu dedo indicador para que lhe mostre aonde está meu mal estar. Sim, saberei conduzir o seu dedo até a minha dor.
Posso ficar zangado quando durmo mal e sentir muito cansaço e nesses momentos, além de chorar, me jogo no chão. Não fique zangada, embora hiperativo, meu corpo às vezes cansa e é meu único modo de comunicar. Não sei  me defender e  posso me auto-agredir se sentir imensa dor. Quando sinto dor de cabeça ou ouvido por exemplo, posso me bater no local para tentar te mostrar o que me incomoda, pois as palavras não saem. Por favor, cuide de mim neste momento para que não me fira.
Minha única forma de expressão é o som e o corpo. Não consigo regular a entonação da minha tentativa de fala que por vezes pode ser alto. Posso guiá-la pela mão para demonstrar o que desejo ou demonstrar minha felicidade diante das pessoas agitando as mãos ou pulando.
Lembre-se, que só conseguirei demonstrar algo que me desagrada através do choro. Seja frio, calor, fome, ansiedade, insegurança ou medo.
Apresento hipossensibilidade tátil. Sinto necessidade de andar passando as mãos pelas paredes e às vezes esbarrando pelas pessoas. Adoro manipular texturas diferentes. Mas quando realizo atividades com tinta, exijo atenção dobrada pois não me limito ao papel.
Apresento hipossensibilidade ao movimento e não resisto em derrubar alguma

coisa só para ver o movimento de cair. Então, se me entregar uma caixa de giz inteira, ela será mais atrativa vendo cada um deles cairem do que usá-los no papel. Evite excesso de estímulos e informações e ofereça-me apenas o que preciso para manter sua proposta de trabalho. 
Sinto extrema necessidade em me mexer, não consigo ficar muito tempo sentado. Posso parar qualquer coisa que esteja fazendo só para olhar alguém andar, ou seja, o movimento dos pés. Amo tudo que tiver velocidade!
Neste mundo, somos todos diferentes e únicos. Através da convivência, aprendemos a respeitar as diferenças e consequentemente, a amar verdadeiramente.

Com carinho,
Ângelo

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